Recampesinização, estado e produção de leite: os caminhos da produção de alimentos em Cuba

Abstract

O leite é considerado uma prioridade em Cuba desde a Revolução de 1959. Após ter atingido, com base no modelo convencional, altos níveis de produtividade ao final da década de 1980, a produção de leite cubana foi severamente afetada pelas grandes restrições materiais impostas pelo Período Especial dos anos 1990, situação decorrente da interrupção das transações comerciais com o bloco socialista, da dependência de insumos externos e da ampliação mundial do bloqueio econômico instaurado pelos Estados Unidos em 1962. Nesse contexto, a chamada revolução agroecológica cubana ocorreu através da produção vegetal camponesa, tendo papel fundamental na recuperação da produção de alimentos. A pecuária agroecológica tem uma particular história no país. Sob a influência dos trabalhos de Andre Voisin e do direcionamento operado pelo Estado, procedeu-se a uma tentativa de ampla utilização das pastagens e outras forrageiras na alimentação dos bovinos. Entretanto, isso acabou por ser dar em moldes convencionais, adotando-se o paradigma da Revolução Verde. No Período Especial, houve uma iniciativa de disseminação de sistemas de Pastoreio Racional Voisin (PRV) para a produção leiteira em unidades estatais de todo o país, com a participação direta de Luiz Carlos Pinheiro Machado. Com o objetivo de reverter uma grande área ociosa à produção para o abastecimento interno, em 2008 foi iniciada a distribuição de terras em usufruto. Esta política promoveu uma intensa recampesinização e reconfigurou a gestão da terra no país, elevando-se a participação relativa do campesinato na produção de alimentos, entre eles o leite. Estudos apontam que a política teve resultados produtivos insuficientes. A recampesinização é parte de um processo de descentralização e ampliação de mecanismos de mercado para alavancar a economia, diante do estrangulamento do Estado decorrente do bloqueio. Esse processo acarretou o aprofundamento da estratificação econômica iniciada nos anos 1990, ampliando-se as desigualdades na sociedade, em geral, e no meio rural. Com a presente pesquisa, busca-se, em primeiro lugar, compreender determinações e elementos de funcionamento de fincas e vaquerías, quanto à produção de leite, à reprodução social e à incorporação da agroecologia, utilizando-se um grande volume de informações primárias e análises qualiquantitativas. Procede-se à caracterização e diferenciação das formas produtivas sob aspectos produtivos, econômicos, sociais e organizativos, tencionando-se esclarecer necessidades, contrastes e possibilidades de coordenação. A avaliação das interrelações entre a forma produtiva, a escala e a matriz tecnológica, e da conexão entre agroecologia e abastecimento, ajuda e apontar caminhos para uma estratégia produtiva, socioeconômica e tecnológica, calcada na qualificação do funcionamento e na integração das unidades para o atendimento sustentável à demanda por leite. Em segundo lugar, busca-se pelos vínculos entre a recampesinização, a produção de alimentos e a desigualdade, através de um paralelo temporal entre intervenções estatais, transformações agrárias e produção, de um lado, e diferenciação socioeconômica e desigualdade, de outro. Com informações predominantemente secundárias e alguns dos dados primários, tenta-se esclarecer a incompletude da abordagem da estratificação em sua conexão com a mudança agrária. Recampesinização e estratificação são partes dos mesmos processos, sendo necessário encontrar meios de apoiar o campesinato, a produção de alimentos e, simultaneamente, reverter a desigualdade crescente.

Abstract: Milk has been a priority in Cuba since the 1959 Revolution. After having reached high levels of productivity at the end of the 1980s based on the conventional model, Cuban milk production was severely affected by the major material restrictions imposed by the Special Period of the 1990s, a situation that resulted from the interruption of commercial transactions with the socialist block, the dependence on external inputs, and the worldwide expansion of the economic blockade established by the United States in 1962. In this context, the so-called Cuban agroecological revolution occurred through peasant crop production, playing a fundamental role in the recovery of food production. Agroecological livestock farming has a particular history in the country. Under the influence of Andre Voisin's work and the direction operated by the State, an attempt was made to widely use pasture and other forage for cattle feed. However, this ended up being done in conventional ways, adopting the Green Revolution paradigm. In the Special Period, there was an initiative to disseminate the Voisin Rational Grazing (VRG) systems for dairy production in State units throughout the country, with the direct participation of Luiz Carlos Pinheiro Machado. Aiming to revert a large idle area to production for domestic supply, in 2008 the distribution of land in usufruct was initiated. This policy promoted an intense repeasantization and reconfigured land management in the country, increasing the relative participation of peasants in food production, including milk. It is pointed out that the policy had insufficient productive results. Repeasantization is part of a process of decentralization and expansion of market mechanisms to leverage the economy, in face of the State's stranglehold on the blockade. This process led to a deepening of the economic stratification that began in the 1990s, increasing inequalities in society in general, and in rural areas. The present research seeks, in the first place, to understand the determinations and elements of the functioning of fincas and vaquerías in terms of milk production, social reproduction, and the incorporation of agroecology, using a large volume of primary information in quali-quantitative analyses. We proceed to characterize and differentiate the productive forms under productive, economic, social and organizational aspects, intending to clarify needs, contrasts and coordination possibilities. The evaluation of the interrelations between the productive form, the scale and the technological matrix, and of the connection between agroecology and food supply, helps to point out paths for a productive, socioeconomic and technological strategy, based on the qualification of the operation and the integration of the units for the sustainable fulfillment of the demand for milk. Second, we search for the links between repeasantization, food production and inequality, through a temporal parallel between State interventions, agrarian transformations and production, on one hand, and socioeconomic differentiation and inequality on the other. With predominantly secondary information and some of the primary data, an attempt is made to clarify the incompleteness of the approach of stratification in its connection to agrarian change. Repeasantization and stratification are parts of the same processes, and it is necessary to find ways to support peasantry, food production, and simultaneously reverse growing inequality.