O sagrado e o tecnológico: interpretações e críticas do discurso sacralizante sobre a tecnologia

Abstract

O problema abordado é o das relações entre o tecnológico e o sagrado no contexto dos discursos filosóficos, historiográficos e sociológicos sobre a técnica e a tecnologia. Na abordagem, analisam-se e comparam-se quatro vertentes contemporâneas. A primeira, referente à posição dos autores Jacques Ellul e Martin Heidegger, sustenta que a tecnologia supera e destrói o sagrado e agora ocupa o seu lugar. A segunda, proposta pelos autores David Noble e Erik Davis, descreve a tecnologia como sendo ela mesma sagrada, na perspectiva das tecnologias contemporâneas possibilitarem ao ser humano alcançar os próprios ideais de transcendência e de superação da finitude. A terceira, embora reconheça a associação entre a tecnologia e as categorias do sagrado, elabora uma crítica ao discurso de caráter salvífico sobre a tecnologia. A quarta e última abordagem, aqui construída, parte das noções de sagrado de Marcel Mauss, Mircea Eliade, Rudolf Otto e Umberto Galimberti, com o propósito de relacioná-las às tecnologias contemporâneas e demonstrar os variados sentidos do uso de conceitos e termos relativos ao sagrado, ao religioso e ao mítico, para pensar o lugar e a função da tecnologia na concepção de mundo contemporânea. Por fim, as seguintes hipóteses foram consideradas: a tecnologia pode ocupar e substituir o lugar do sagrado no âmbito do imaginário sobre a salvação humana; o discurso tecnológico assimila e complementa as categorias do sagrado, concebendo a tecnologia como uma continuação deste e das religiões; no contexto da superação dos problemas humanos, a tecnologia adquire predicados ligados às categorias do sagrado apenas no âmbito do discurso de propagação de seu valor, o que pode ser entendido como uma relação ilusória, e, portanto, ideológica. Contudo, as análises mostram que a tecnologia não se relaciona com as categorias e valores do sagrado em seus fundamentos, apenas nos discursos utilizados em prol de sua defesa e propagação. A partir disso, propomos que tal assimilação de categorias do sagrado ocorre apenas no âmbito dos discursos filosóficos, históricos e sociológicos sobre as técnicas e tecnologias, não sendo possível estendê-las para o âmbito ontológico. Esta forma de atribuição de categorias relativas ao sagrado à tecnologia, porém, justifica-se pelas teorias de Bronislaw Szerszynski, Clifford Geertz, Émile Durkheim e Eudoro de Souza, no plano do sentido e da justificação. A conclusão geral é que há uma falsa relação entre o sagrado e o tecnológico, que ocorre no âmbito da elaboração social do seu sentido, no plano da justificação e da difusão ideológica da tecnologia. Em outros termos, propõe-se que há uma ilusão na percepção da tecnologia, como tendo aspectos do sagrado e do numinoso, fundada no conhecimento de que pelas técnicas e tecnologias a humanidade supera as constrições naturais e se liberta da precariedade material.

Abstract: The issue discussed in this work refers to the relation between the technological and the sacred, regarding the context of philosophic, historiographic and sociologic discourses about technology. In this study, four contemporary approaches of such debate are analyzed and compared. The first one, which refers to the perspective of authors Jacques Ellul and Martin Heidegger, claims that technology overcomes and destroys the sacred, replacing it. The second one, designed by authors David Noble e Erik Davis, describes technology as being sacred by itself, meaning that contemporary technologies might allow human beings to reach their ideals of transcendence and overcoming of finiteness. The third one, while recognizing the connection between technology and the categories of the sacred, elaborates a commentary on the salvific tone of the speech about technology. The fourth and last approach, the one crafted in this work, has as starting point the notions of the sacred brought by Marcel Mauss, Mircea Eliade, Rudolf Otto and Umberto Galimberti, aiming to correlate them to contemporary technologies; by doing so, its purpose is to demonstrate that the use of concepts and terms related to the sacred, the religious and the mythic admits a variety of meanings regarding the contemplation of place and function of technology on the modern understanding of the world. Thus, the following hypothesis were considered: the technology can seize the place of the sacred and replace it in the realm of the imaginarium regarding the deliverance of humanity; the technological speech has swallowed the categories of the sacred and added to them, conceiving technology as an extension of the sacred and the religions; the technology acquires qualities connected to the categories of the sacred only in the realm of the spreading speech of its power as to the overcoming of human hardships, what might be understood as an illusory relation and, thus, an ideological one. However, this study shows that technology only relates to the categories and values of the sacred when it comes to the discourses used for its preservation and expansion. Thenceforth, we propose that such absorption of categories of the sacred takes place only in the realm of historical, psychological and sociological discourses about techniques and technologies, being impossible to expand them to the ontological realm. Such way of attributing sacred-related categories to technology finds validation in the theories of Bronislaw Szerszynski, Clifford Geertz, Émile Durkheim and Eudoro de Souza, in the realm of meaning and justification. The overall conclusion is that there is a false relation between sacred and technological, one that occurs in the social field, in the realm of justification and ideological dissemination of technology. In other words, there is a perceptive illusion of technology as having both aspects of the sacred and the numinous, based on the comprehension that humanity overpowers natural adversities and releases itself from the material instability through techniques and technologies.