Teatro moderno em questão: indícios e manifestações do épico por Vianinha e Brecht

Abstract

A recepção da obra artística e teórica de Bertolt Brecht no Brasil em meados dos anos 1950 compõe o quadro do processo de modernização da cena e da dramaturgia nacionais, decorrente de uma acumulação crítica e teórica que remonta ao Modernismo. Isso porque o contato com a obra do dramaturgo e teórico alemão colocou em questionamento ao menos dois paradigmas: a hegemonia do drama enquanto forma teatral dominante e a ausência de um teatro nacional. Essas mudanças de ordem estética estavam conectadas com um contexto também modernizante e questionador pelo qual passava não só o país, mas a América Latina de forma geral, marcado pelo fortalecimento de um sentimento anti-imperialista reivindicado também em todos os campos das artes. Ganhou corpo o movimento de teatro independente em inúmeros países do cone sul, em especial na Colômbia, encabeçado pelo diretor e dramaturgo Enrique Buenaventura. Além disso, a apropriação da teoria e da obra artística de Brecht tornou-se sinônimo de resistência e de necessidade da constituição de uma forma própria de fazer teatro ? não copiá-lo, mas ressignificá-lo diante da iminência do surgimento de inúmeros governos ditatoriais. Foi nesse contexto que Oduvaldo Vianna Filho escreveu A mais-valia vai acabar, Seu Edgar, montada e dirigida por Chico de Assis em 1961. Ao tratar da alienação da classe trabalhadora em relação ao processo de superexploração da sua força de trabalho pelo capital, Vianinha lançou mão de elementos estilísticos que colocam na ordem do dia a limitação da forma dramática: personagens não subjetivados; rompimento com a unidade de espaço e tempo através do uso da forma teatro de revista e a literarização da cena através da construção cenográfica. Os recursos apontam para uma apropriação crítica da teoria do teatro épico, considerando que esses são elementos também utilizados por Brecht na tessitura da peça que marca o momento de sua produção teórica, a saber, a peça Um homem é um homem - a transformação do estivador Galy Gay, nas barracas militares de Kilkoa, no ano de mil novecentos e vinte e cinco, de 1926. O reconhecimento do autor como símbolo de resistência política e estética permanece. A tese busca, a partir dos elementos acima elencados, investigar quatro eixos do processo dessa recepção da obra artística e teórica de Brecht: 1. No campo da teoria literária, o teatro épico de Brecht como expressão do caráter dinâmico dos gêneros literários; 2. Dentro do campo da recepção da obra de arte e seus necessários intercâmbios, a maneira como o processo de modernização teatral pelo qual passou o teatro brasileiro a partir da década de 1950 dialogou diretamente com processos semelhantes e em andamento na América Latina; 3. A montagem de A mais-valia, de Vianinha, ao enfrentar o limite da forma dramática através da utilização de recursos épico, enquanto expressão de um salto modernizante na dramaturgia e no teatro brasileiro; 4. A atualidade da obra de Brecht no Brasil, destacando as marcas da nossa própria história, em especial, de um dos momentos mais obscuros no campo da produção artística e cultural do país, que foi o período após o Golpe de 1964. O estágio inicial da análise permite a formulação de hipóteses norteadoras da investigação: a recepção do teatro épico alemão no Brasil não ficou restrita ao âmbito das encenações em teatros profissionais, apesar de sua importância, mas esteve engendrada em um processo complexo do qual faz parte as montagens amadoras levadas à cabo pela Escola de Arte Dramática, de São Paulo; a recepção de Brecht no Brasil envolveu também o contato da crítica literária brasileira com seus escritos teóricos, destacando-se desse processo a fortuna crítica elaborada por Aníbal Machado em meados dos anos 1940; a montagem de A mais-valia, de Vianinha, ao mobilizar elementos narrativos (literarização do palco, personagens não subjetivados e rompimento com unidade de ação) atinentes à teoria do teatro épico, pode ser lida como um momento de modernização do teatro brasileiro em termos de dramaturgia e montagem; o teatro épico de Brecht continua vivo na cena teatral brasileira, basta ver a quantidade de grupos empenhados na atualização dessas experiências.

Abstract: The reception of the artistic and theoretical work of Bertolt Brecht in Brazil in the mid-1950s composes the framework of the process of modernization of the national scene and dramaturgy, resulting from a critical and theoretical accumulation that dates back to Modernism. This is because the contact with the work of the German playwright and theorist has called into question at least two paradigms: the hegemony of drama as the dominant theatrical form and the absence of a national theater. These aesthetic changes were connected with a context that was also modernizing and questioning that not only the country was going through, but Latin America in general, marked by the strengthening of an anti-imperialist sentiment also claimed in all fields of the arts. The independent theater movement took shape in numerous countries of the Southern Cone, especially in Colombia, headed by the director and playwright Enrique Buenaventura.In addition, the appropriation of Brecht's theory and artistic work became synonymous with resistance and the need to constitute a way of doing theater ? not to copy it, but to re-signify it in the face of the imminence of the emergence of countless dictatorial governments. It was in this context that Oduvaldo Vianna Filho wrote A mais-valia vai acaba, Seu Edgar, assembled and directed by Chico de Assis in 1961. In dealing with the alienation of the working class from the process of overexploitation of its labor power by capital, Vianinha made use of stylistic elements that put on the order of the day the limitation of the dramatic form: non-subjective characters; rupture with the unity of space and time through the use of the magazine theater form and the literarization of the scene through the scenographic construction.The resources point to a critical appropriation of the theory of epic theater, considering that these are elements also used by Brecht in the tessitura of the play that marks the moment of his theoretical production, namely, the play A man is a man - the transformation of the longshoreman Galy Gay, in the military barracks of Kilkoa, in the year one thousand nine hundred and twenty-five, of 1926.The recognition of the author as a symbol of political and aesthetic resistance remains. The thesis seeks, from the elements listed above, to investigate four axes of the process of this reception of Brecht's artistic and theoretical work: 1. In the field of literary theory, Brecht's epic theater as an expression of the dynamic character of literary genres; 2. Within the field of the reception of the work of art and its necessary exchanges, the way in which the process of theatrical modernization through which the Brazilian theater has passed since the 1950s has dialogued directly with similar and ongoing processes in Latin America; 3. The assembly of A mais-valia, by Vianinha, when facing the limit of the dramatic form through the use of epic resources, as an expression of a modernizing leap in Brazilian dramaturgy and theater; 4. The actuality of Brecht's work in Brazil, highlighting the marks of our own history, in particular, of one of the darkest moments in the field of artistic and cultural production in the country, which was the period after the 1964 coup. The initial stage of the analysis allows the formulation of guiding hypotheses of the investigation: the reception of the German epic theater in Brazil was not restricted to the scope of the staging in professional theaters, although its importance, but was engendered in a complex process of which is part of the amateur assemblies carried out by the School of Dramatic Art, of São Paulo; Brecht's reception in Brazil also involved the contact of Brazilian literary criticism with his theoretical writings, highlighting from this process the critical fortune elaborated by Aníbal Machado in the mid-1940s; the montage of A mais-valia, by Vianinha, by mobilizing narrative elements (literarization of the stage, non-subjectivized characters and rupture with unity of action) related to the theory of epic theater, can be read as a moment of modernization of Brazilian theater in terms of dramaturgy and assembly; Brecht's epic theater is still alive in the Brazilian theater scene, just look at the number of groups committed to updating these experiences.