Abstract:
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A biodiversidade amazônica tem sido valorizada principalmente por seu potencial econômico, o que é usualmente empregado no delineamento das políticas públicas para a região. Neste contexto, o conhecimento tradicional é considerado estratégico. Via um protocolo de entrevistas, captou-se a "riqueza de memória" de nove famílias ribeirinhas sobre o uso de plantas, permitindo a quantificação das percepções locais de valor de importância (VI) e de utilidade (VU) para 344 espécies da várzea e da terra firme de entorno à duas comunidades na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (Amazonas, Brasil). Foram obtidos índices com as opiniões das famílias sobre a abundância, resistência à cheia, resistência ao uso e intensidade de manejo agrícola de cada uma das espécies mencionadas. Os usos sugeridos pelos ribeirinhos foram categorizados em sete grupos (construção, comércio, medicinal/cosmético/espiritual, alimentar, artefatos/tecnologias, "bicho come" e lenha). Constatou-se que as espécies medicinais são as mais freqüentes em suas memórias (63%), sendo que estas e artefatos/tecnologias possuem as espécies mais úteis (VUmed = 0,81; VUart = 0,81 versus VUtotal = 5,96). Em contraste, as plantas alimentícias e as medicinais foram as mais importantes (VIalim = 0,42; VImed = 0,40 versus VItotal = 2,00). Tanto a utilidade como a importância das espécies são frutos de preferências sócio-culturais locais, tendo sido desenvolvidas independentemente de percepções ecológicas. O processo de domesticação de plantas medicinais ainda é pouco conhecido, de forma que verificou-se a existência de variabilidade intra-específica em três espécies [Lippia alba (Mill) N.E. Br. (Verbenaceae), Jatropha gossypiifolia L. (Euphorbiaceae), e Petiveria alliacea L. (Phytollacaceae)] de grande importância para os ribeirinhos, com base em descritores sensoriais, agro-ambientais e morfológicos. Foram identificadas quatro variedades de L. alba, sendo uma selvagem, uma incidentalmente co-evoluída e duas variedades locais ou crioulas domesticadas. Duas variedades distintas de J. gossipiifolia e duas de P. alliacea também foram confirmadas. Uma das variedades em J. gossipiifolia parece ter sido recentemente fixada na região. O processo de domesticação nestas três espécies foi dominado primariamente por caracteres morfológicos. Entretanto, uma vez visível a variabilidade, critérios mais subjetivos (organolépticos, percepções relacionadas à doutrina das assinaturas) passam a ser fundamentais na determinação dos usos e fixação da variedade detectada. A análise completa das percepções dos ribeirinhos sugere que as áreas comunitárias devem ser priorizadas por programas de conservação de recursos genéticos vegetais, tanto devido a utilidade, importância e diversidade de recursos presentes nas comunidades, como também por ser o palco principal da criação e manutenção de variedades intra-específicas das três plantas medicinais estudadas, e, por extensão, as outras espécies úteis. |