A pilha de François

O desejo de incentivar sonhos e a comunicação trouxeram François Muleka à música de Floripa

O baixo dentro do estojo que François Muleka leva nas costas foi o instrumento utilizado em sua primeira apresentação, no Pátio de São Pedro, em Recife. Sua estreia foi para um público muito maior do que no concerto de hoje, realizado ao meio-dia e meia de uma quarta-feira no campus de Florianópolis da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

É outro momento de sua vida. Do adolescente que se planejava para prestar o vestibular ao músico profissional passaram-se questionamentos, planos e mudanças. Casou-se com a figurinista Alice Assal e teve com ela o pequeno Luiz, hoje com seis anos de idade. Vivem juntos há dez anos em Florianópolis, cidade onde formou grande parte da sua rede e de seu nome.

Entre músicos e aficionados da cidade, o nome de François ficou conhecido há muito tempo. Desde sua projeção como integrante da banda Karibu, formou um público fiel e presente. A apresentação na universidade foi uma exceção. Apresentações suas em formatos intimistas e acústicos esgotam entradas. Shows em casas noturnas e teatros também possuem êxito.

François é modesto para falar de si. Filho de imigrantes congoleses, reconhece o tamanho de seu trabalho apenas uma vez.

“Quantos meninos pretos com violão debaixo do braço tem a oportunidade de ter a voz que eu estou tendo? Porque pequena que é, ela é grande.”

Ele não planejava sequer seguir a carreira de músico. Seu sonho de infância era ser desenhista. Depois, começou a cursar três faculdades, em diferentes universidades. Sua profissão veio do acaso. “Porque quando tinha um bico que eu podia fazer, era sempre um bico com música.”

O trabalho que faz hoje não pode mais ser chamado de bico. François é requisitado a participar da gravação dos álbuns de vários colegas. Lançou três álbuns físicos com seu nome entre os artistas principais. Agora admite: “como profissão, sou músico, por enquanto.”

Francisco ou François?

A família de François sempre foi musical. Quando os pais mudaram-se da República Democrática do Congo para o Brasil no começo da década de 1980, montaram um duo vocal de música congolesa com uma banda de apoio brasileira que fazia shows na região central da cidade de São Paulo. A mãe trabalhava também na embaixada do Congo. O pai era professor universitário. Tinham outros quatro filhos quando descobriram que havia um menino a caminho.

Após decidirem chamá-lo de François, os pais foram registrar o garoto. No cartório, foram surpreendidos e impedidos pelo tabelião de colocarem o nome escolhido. Ele considerou que o nome francês poderia expor a criança ao ridículo e ordenou que escolhessem outro. Enfurecido, o pai de François esbravejou que colocaria o nome do filho de “Diretas Já”, que era em português. Foi a mãe quem acalmou os ânimos e encontrou a solução: registraram-no com uma tradução para o português: Francisco.

Dentro de casa, o nome de batismo nunca valeu de nada. Sempre foi chamado de François, ou pelo apelido carinhoso de Fran. Ainda bebê, François seguiu com a família para o Distrito Federal, onde o pai lecionou na Universidade de Brasília. Como seus contratos eram sempre de professor convidado, tinham duração de dois anos sem direito à renovação. A instabilidade levou a família a mudar constantemente de cidade e até de estado. Viveram em Goiás, Bahia, Sergipe, Pernambuco e Paraná.

Em cada escola, François precisava novamente explicar porque se apresentava com um nome diferente do escrito na chamada dos professores. No começo, repetia a história verdadeira. Depois, passou a inventar versões de porque seu nome era diferente. Por fim, decidiu assumir Francisco como sua identidade. Queria ser chamado de Chico.

Aficionado por novelas, começou a tocar os temas que conseguia tirar no violão, além de Legião Urbana e outras bandas populares entre adolescentes dos anos 1990. Aprendeu a tocar baixo, e formou suas primeiras bandas com amigos de escola ou vizinhos. Com apoio do colégio particular recifense onde estudou um período, sua banda Protótipo teve camisetas e permissão para tocar releituras durante o intervalo das aulas.

Dentro de casa, era costume reunir a família para cantar e tocar. Se estavam todos os irmãos, eram em seis pessoas, e François era o segundo mais novo. Sua irmã mais velha, nascida no Congo e hoje musicista reconhecida e residente na França, Alpha Petulay iniciava sua caminhada na estrada da música. Gravou seu disco de estreia Delight Tribal aos 20 anos, em 2001. François tinha 16.

Alpha convidou o irmão para participar da passagem de som de uma apresentação. Ele tocaria baixo - aquele,  vermelho, que permanece em sua companhia. Animado, ele partiu com ela rumo ao local planejado, sem saber exatamente onde ou como seria seu trabalho. “Ela não explicou que era no Pátio de São Pedro, lugar grande. A gente não ensaiou nada e ela me botou no palco pra fazer o show.”

Não houve tempo para sentir nervosismo. Com o baixo ajustado e a estrutura montada sobre o palco com a irmã, ele não teve outra opção. Como tocavam as músicas ocasionalmente em sua casa, concentrou-se em recordar e acompanhar a irmã. Felizmente, funcionou. O baixo de François combinou com a sonoridade da irmã.  A tensão transformou-se em seu momento de maior plenitude na música pelos anos seguintes.

Foi a irmã quem acabou por decidir o nome público de seu irmão. Ao apresentar os músicos, ela disse seu nome como estavam acostumados em casa. “Fiquei mordido por um bom tempo, porque durante muitos anos a melhor coisa que eu fiz de música que eu fiz foi chamado de François.” Com o tempo, reconciliou-se com sua própria identidade com a independência dos nomes. “Eu sou eu, que diferença faz?”

Boas vindas

Chegado o momento de decidir uma carreira, François ainda olhava a música como uma forma de lazer. Sentia a necessidade de escolher uma carreira com seriedade e decidiu prestar vestibulares focado em seu fascínio sobre a troca de informação entre as pessoas. Iniciou o curso de Comunicação Social na Universidade Federal de Pernambuco, na cidade de Caruaru. Foi durante o período na cidade que passou a ganhar seu sustento com a música: tocava na noite, em bares e casas noturnas. Aceitava convites que insistiam em aparecer.

Após cinco semestres até convencer a si mesmo do erro em sua decisão. Não era aquela a comunicação que queria. Inventou de prestar vestibular em Florianópolis como forma de viajar para visitar seu irmão mais velho, estudante de letras na UFSC. Chegou a ilha para passar alguns dias em dezembro, e voltou com a certeza de que não havia sido aprovado. “Resolvi fazer de novo por birra. Porque dava para passar, era só ler.” Retornou a ilha um ano depois, e foi aprovado em letras na UFSC e em pedagogia na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc).

Tampouco conseguiu encontrar um lugar para si nos novos cursos. Seu desejo de comunicação era outro, além da lógica das salas de aula ou do estudo das línguas. A única área compreendida como de seu agrado foi a semântica.

“Eu não entendia ainda, mas meu desejo não era só comunicar, era saber o que significa as coisas que a gente comunica.”

Em seu fascínio pelas palavras, François escrevia canções pensadas na música popular, com letras poéticas guardadas em geral para si. A oportunidade de colocar seu trabalho para fora surgiu ao conhecer outra colega de curso desajustada, a poetisa Nicola Gonzaga. “Éramos os dois diferentões, com cara de cursar história ou geografia.” Trocavam poesias e criações durante as aulas, e logo veio o convite para que ele fosse a um churrasco de família dela.

O irmão de Nicola, João Amado, também é poeta e músico. Formava uma banda de jazz com o baterista Wilson Souza e o trompetista Jorge Farias. Durante o churrasco, João pegou violão e convocou o convidado para tirarem um som. Iniciou ali sua parceria. “Desde então são treze anos tocando.” Através do novo amigo, os convites para ganhar dinheiro com música surgiram de novo para ele, em sua nova cidade.

Com Nicola na percussão, João no violão e François no baixo foi formada a banda Mitra Miranda. Tocavam jazz instrumental. Eram chamados para eventos em museus, cafés, livrarias e ocasionalmente, festas. Com a saída de Nicola, os dois rapazes continuaram como um duo batizado Bossa Jazz Instrumental. Além de releituras, apresentavam composições instrumentais próprias.

O peso das dificuldades para continuar na universidade aos poucos não valia mais a pena para François. Não conseguia conciliar o trabalho necessário com o desempenho que desejava nas disciplinas. “Felizmente, muita gente consegue. Eu não fui uma dessas pessoas.” Foi convocado a assinar o abandono do curso de pedagogia na UDESC, e um tempo depois abandonou a UFSC.

François morava numa república no bairro do Saco Grande, bairro da região centro-norte de Florianópolis, batizada pelos nove moradores de A Casa da Música.“Viviam artistas de todo tipo e frequentava uma galera: artista visual, audiovisual, músico erudita, músico popular. Muita gente que frequentava o espaço começou a tocar lá.” A energia descontraída entre todos parecia brincadeira, mas foi o nascimento para os trabalhos sérios apresentados através da ilha.

O estudante de artes visuais Maximilian Tommasi estava entre os moradores dispostos a tocar juntos. Sem morar na casa, o então estudante de música e baixista Trovão Rocha estava assiduamente presente nos vários encontros marcados. Ao lado de François, formaram um trio com grande potencial criativo notado por eles próprios. O desejo de compartilhar o trabalho para além de paredes familiares tornou-se quase uma necessidade.

A forma para expandir seu alcance foi desenvolver coletivamente uma nova roupagem para composições populares criadas por François e guardadas no fundo da gaveta durante anos. Assim o trio fez nascer em 2010 a banda Karibu, batizada a partir de uma palavra da língua suaíli. Seu uso no dialeto africano é dar um voto de boas vindas, e pareceu ideal para a proposta de apresentar “músicas simples em arranjos interessantes e variados”.

A formação tornou-se um sucesso, com apresentações frequentes em casa noturna na Grande Florianópolis. Foram convidados a participar do Circuito Musical SESC-SC, programa cultural do Serviço Social do Comércio focado na difusão de músicos locais por todo o estado. As apresentações por várias cidades do interior atravessaram locais díspares como casas de abrigo para idosos e espaços de rock.

A satisfação com o próprio trabalho deu ao trio vontade de ter seu momento registrado em um CD. Com François no violão e nos vocais e Max na bateria, Trovão Rocha assumiu o baixo e a produção. Para François, Trovão “sempre teve o papel de diretor musical, até na hora de dar nomes aos acordes que a gente só tocava”.

Reuniram suas economias e contaram com o apoio de muitos camaradas para fazer o projeto acontecer. “É como as coisas independentes acontecem: um amigo aqui, outro ali”, diz François. Contataram Felipe Melo para conseguir um preço mais barato em seu estúdio, o Opa! Music. Outro morador da Casa da Música, Tiaraju Verdi foi responsável pelas fotografias e o design do encarte.

O álbum recebeu o nome da banda e foi oficialmente lançado em novembro de 2012, junto com um videoclipe dirigido por Francis Pedemonte para a canção “Entrando no País das Maravilhas”. Do material disponibilizado gratuitamente na internet pelo grupo, o vídeo possui o maior número de visualizações. Se somado com outro vídeo da mesma canção tocada solo por François para o canal de YouTube Rec ‘n’ Play, são mais de 100 mil reproduções. A letra sobre a sensação de apaixonar-se é até hoje cantada em uníssono pelo público nos shows de François.

As onze canções do CD combinam diversos ritmos, como jazz, rock, samba e outros ritmos regionais brasileiros e congoleses. Participações especiais dos amigos Diogo Valente, Kadu Müller e Carol Miranda adicionaram gaita, violão e percussão, respectivamente. A cantora e compositora Marissol Mwaba, irmã caçula de François, contribuiu com sua voz aguda e límpida na canção Baile Perfumado.

O lançamento agradou o público, e a agenda de shows permaneceu cheia. Surgiram convites para apresentações em parceria com grandes músicos de várias partes do Brasil, como Alegre Corrêa, Ana Paula da Silva, Filó Machado, Paulo Calasans e a banda paulista Metá-Metá.

Alimento do corpo e da alma

Durante as gravações do disco da banda Karibu, outra gestação aconteceu. Em 2008, François havia iniciado um namoro bastante sério e intenso com a figurinista Alice Assal, irmã de Trovão Rocha. “A gente se encontrou em um terminal de ônibus um dia, e começamos a casar ali mesmo.” Ela engravidou e deu a luz ao pequeno Luiz em novembro de 2011. Formou-se o lar dos três em um apartamento no bairro da Carvoeira, região central de Florianópolis.

A vida compartilhada do casal, a ansiedade durante a gravidez e o nascimento do filho deram um novo fôlego criativo para François. Surgiram inúmeras novas canções para se acumular sobre outras tantas guardadas. Quem ouvia, encantava-se. Passado o lançamento do álbum da Karibu, os amigos passaram a cobrar um novo disco, agora assinado pelo próprio François.

“Tenho essa sorte”, diz François, “sempre que eu me proponho a fazer alguma coisa, alguém me pilha. Ou às vezes me pilham pra coisa que eu nem me propus a fazer.” Seu CD solo pertence ao segundo caso. Pessoas próximas pediam o álbum, e sugeriram a montagem de uma campanha de financiamento coletivo para conseguir lançá-lo.

Através da plataforma Catarse, arrecadaram 15 mil reais. A produção do disco ficou a cargo de Francis Pedemonte. Trovão Rocha novamente assumiu a direção musical, com a missão de alcançar uma forma final diferente do material da Karibu, sem perder a qualidade. Além de repetir as parcerias do disco anterior, convocaram Rafael Meksenas, Leandro Fortes, João Amado, Gean Tomazi, Eva Figueiredo e Larissa Galvão. As participações ilustres ficaram por conta de Alegre Corrêa e Toucinho Batera.

O álbum recebeu o nome de Feijão e Sonho a partir de reflexões de François sobre as necessidades humanas: “feijão pra alimentar materialmente, e sonho para alimentar a alma”. Durante a gravação da canção que dá título ao disco, Toucinho Batera surpreendeu ao tocar versões diferentes em cada take. A terceira e última foi a escolhida para entrar no disco.

Os arranjos buscam valorizar o jeito percussivo que François tem de tocar o violão, como forma de facilitar a montagem de boas apresentações futuras sem a necessidade de uma banda de apoio. “Bolei assim com o Trovão porque era importante ter as duas possibilidades: o trabalho meu de voz com violão e as formações possíveis com banda.” Novamente há uma convergência de ritmos e experimentações, com letras mais intimistas do que no CD anterior.

Com a ajuda da musicista Ana Paula da Silva, François conseguiu levar um show de voz e violão com o conteúdo do disco para doze cidades argentinas. Outras turnês foram feitas pela região sul do Brasil, com banda ou desacompanhado, em paralelo a eventuais trabalhos com a Karibu.

Infelizmente, o processo de distribuição do CD culminou em divergências entre François e a organizadora da campanha de financiamento coletivo, Andrea Rosas. O estresse desencorajou François a repetir a fórmula de financiamento em outros projetos.

Seu terceiro e último CD físico apenas foi possível devido a muita insistência e uma mentira por parte do percussionista Jean Boca. Após fazer inúmeros convites para gravarem juntos, Jean convocou François para uma sessão de música na casa de um amigo em Jaraguá do Sul. O concerto informal foi gravado e virou o álbum “O Limbo da Cor”, lançado em 2016.

Músico, professor, pintor. Artista.

O momento de maior visibilidade de François Muleka veio em 2017, quando foi convidado a tocar no palco do canal da empresa de TV por assinatura Sky. Além de apresentar sua música, ele viajou de carro na companhia de outros quatro músicos de São Paulo até o Rio de Janeiro, para a gravação de um reality show publicado. “Foi muito legal. Ver que nossa música nos levou àquele lugar.”

Apesar de não imprimir em material físico, François lançou no mesmo ano o álbum “Fauno Aflora” através de plataformas de streaming. Gravado ao vivo em um concerto para família e amigos no Armazém do Heyokah, em Florianópolis, é quase inteiramente voz e violão. Como única participação. Alegre Correta toca percussão e guitarra nas últimas quatro canções.

“Fauno Aflora” é sua fase mais inspiracional até o momento, surgido a partir dos questionamentos do próprio François a respeito de seu processo criativo. Ao tentar ministrar oficinas de composição, ele encontrou uma dificuldade interna. “Eu não sei dizer como componho uma música, então não tenho esse produto para oferecer. No máximo podia te mostrar como fazer uma música parecida com as minhas.”

Para chegar às composições e a definição do próprio processo, François retornou a disciplina de semântica, seu maior encantamento durante a faculdade de letras. Passou a anotar trocadilhos em seis blocos de notas conforme os temas impressos nas capas: Compre Menos, Trabalhe Menos, Duvide Menos, Chore Menos, Ame Mais, Pense Mais, Sorria Mais, Viva mais. De cada caderno, forçou-se a produzir uma música.

Ao mesmo tempo, retornou ao seu sonho de infância de desenhar. Criou uma série de reflexões imagéticas sobre as diferenças entre “ser” e “parecer”, a partir de uma técnica mista que combina nanquim, aquarela, pastel oleoso e lápis de cor. As pinturas de diferentes tamanhos sobrepõe figuras como rostos e pássaros, de modo a confundir os olhos do espectador sobre as diferentes interpretações e focos possíveis. Sua criação foi reunida numa exposição, apresentada na galeria SoulCiety, em Florianópolis, e batizada Psicodelicado.

A exposição, o álbum e os trocadilhos complementam o projeto Faunália, que também inclui oficinas de criatividade desenvolvidas por François para estimular artistas de diferentes áreas. Ele também prepara um livro de poesias ainda sem data de lançamento. “É a sistematização de tudo que descobri de mim, do meu processo.”

François também passou a criar rimas de rap depois de um incômodo. “Toquei num evento antirracista, e foi uma das poucas situações em que tive um público majoritariamente preto.” Ele reconhece que não é devido a ausência de negros em Florianópolis. “Eles só não estão no espaço em que a gente circula. Tem muita gente, que mora na quebrada e tá passando muito mal.” O rap é uma forma de “pretificar” seu público.

Depois de tantos anos e trabalhos, François passou a aceitar sua alcunha de músico, com ressalvas. “Você é o que você quiser, porque é só um dizer. E quando você não quer mais, você diz outra coisa.” Seu objetivo maior é estimular a criação, em suas diversas formas, conectar pessoas e estar sempre próximo do novo.

“E que pinta disso? Qualquer coisa! E tá bom. Que venha. E que seja bom.”

A pilha de François
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