Cantando histórias
Sonho de Dandara Manoela vira realidade em disco sobre sua vida e ancestralidade
O muro e as paredes pálidos não fazem juz as cores de dentro de sua casa. Do corredor da cozinha, enxerga-se o colorido das roupas penduradas na arara em seu quarto. Vestidos e saias rodadas com estampas étnicas, escolhidos conscientemente como forma de honrar sua ancestralidade. Dandara é a cara das histórias que conta e que não são apenas suas. “Como mulher negra, pelos temas que falo, tudo parece sempre além de mim.”
Dandara tem conquistado bastante. Pela primeira vez em cinco anos, não solicitou vagas para a moradia estudantil. Divide uma casa de fundos no bairro do Itacorubi, região central da ilha de Florianópolis. Começou a trabalhar como estagiária em março. Está na metade da faculdade de Serviço Social, na UFSC. Em janeiro, iniciou reuniões para organizar a gravação e o financiamento coletivo de seu primeiro CD solo, batizado de Retrato Falado.
Para viver tantas alegrias, Dandara aceitou uma rotina corrida. Ensaia em dias da semana com as duas bandas que integra: a percussiva Cores de Aidê e a experimental Orquestra Manancial da Alvorada. Tenta participar de todos os projetos musicais que recebe convite.
A correria é grande. “A vida é um atropelo. Várias coisas paralelas acontecendo e eu tentando fazer o malabarismo”. Seja no trabalho em que estiver, ela não é de reclamar. O estresse de tantas funções não é suficiente para aborrecê-la. Sorri quase o tempo todo com beleza e brilho. Sem saber a última vez em que teve um dia livre, está feliz. Fala muito de gratidão, sobretudo aos outros.
“As pessoas me acolhem, são muito generosas comigo. Tento contribuir com o máximo que eu posso, porque acredito na lei do retorno.” Ela também se entrega muito: à família, às infinitas parcerias, ao público. Até agora, funcionou. “Todas as pessoas que eu encontrei no caminho, tenho comigo agora também.”
Para chegarmos em sua casa nos fundos do terreno, Dandara guia desde o portão de entrada, atravessa um corredor lateral e sobe uma escada. A porta dá na cozinha, única área comum dentro da residência, que tem dois quartos e um banheiro. Sentada à mesa, ela explica as duas interrupções previstas: Renata, namorada há pouco mais de um ano com quem mora desde janeiro, e uma amiga de visita em Florianópolis durante o final de semana. A outra moradora da casa, sua amiga Bruna, chegaria mais tarde.
Os sorrisos de Dandara expandem o seu humilde espaço. Com amor, as moradoras resolveram encher a casa com ainda mais vida: adotaram duas cadelas vira-latas dóceis e barulhentas. Compartem memórias felizes, sonhos e planos. Contam os dias para o lançamento do Retrato Falado. Ele, sim, com histórias tristes, necessitadas de serem contadas.
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Dandara Manoela tem 26 anos. Nasceu e cresceu em Campinas, interior de São Paulo. Tem seis irmãos: três filhos de seu pai e três filhos de sua mãe. Durante a infância, ostentou uma vida razoavelmente melhor do que a deles. Foi criada por sua avó e pela tia Deborah dos Santos, empregada doméstica que levava pra casa roupas e objetos usados da família abastada para quem trabalhava. “Todo mundo olhava porque eu era a criança pobre que tinha tudo.”
Frequentadora da igreja evangélica desde pequena, encantou-se com a música pela primeira vez aos sete anos, após assistir o filme Mudança de Hábito. “É um marco de representatividade pra mim: ligar a TV e ver Whoopi Goldberg, mulher, negra, mover as pessoas com a música, pensei: eu quero ser isso!” Pediu para cantar na igreja e a tia ficou receosa por causa do jeito exagerado da sobrinha.
Depois de muita insistência, a tia deixou a menina cantar, com muitas ressalvas. Advertiu sobre o jeito espalhafatoso. Insistiu para que ela se contesse. “A primeira vez eu travei com medo. Fui cantar e parecia uma múmia. Mexia só a boca.” Ainda assim, agradou a platéia. Dali pra frente, cantava frequentemente em cerimônias na igreja. Na adolescência, cantava em casamentos e aniversários, sempre músicas religiosas.
Nunca deixou de conviver com os pais, com quem teve seus primeiros contatos com outras expressões musicais. O pai era percussionista numa banda, e a mãe é ex-dançarina. Na casa da mãe, ouvia e aprendeu a amar a música popular brasileira. Passou a gostar de Elis Regina, Elza Soares, e outros nomes que não decorava pois não podia cantar na casa de sua avó. “Na minha igreja era muito errado, você tinha de cantar músicas da igreja.”
No último ano do ensino médio, frequentou pela primeira vez uma escola particular, paga por um projeto filantrópico dos patrões de sua tia. Passou a enfrentar simulados para o vestibular todos os finais de semana. Estudava conteúdos nunca vistos em suas escolas anteriores. Antes considerada boa aluna, começou a sentir vergonha de seu desempenho. “No terceirão, eu nem prestei vestibular por vergonha da nota que eu ia ter.”
Encerrado o período de colégio, conseguiu um emprego como recepcionista de hotel. Trabalhava aos sábados, dia em que eram celebrados os cultos na igreja de sua tia. Foi sua forma de afastar-se de um ambiente no qual não se sentia acolhida. “As pessoas acreditavam de uma forma que não batia em mim. Não era honesto da minha parte ficar lá só pra continuar cantando.”
Após um ano sem estudar, ingressou no curso de Publicidade e Propaganda da Escola Superior de Administração, Marketing e Comunicação (Esamc). As mensalidades eram pagas pelos patrões de sua tia. Morava sozinha numa casa de aluguel. Trabalhava durante o dia e estudava à noite. Na faculdade, cantava ocasionalmente em festas ou bares.
A diferença de sua vida e de seus colegas sempre foi sentida em diversas formas. Dandara não possuía o repertório musical deles: seu contato com sambas, axés e outras sonoridades brasileiras era incipiente. Tampouco tinha tempo para focar na música, entrar em uma banda ou algo do tipo. Sua rotina não permitia. Ela não podia arcar com ser má aluna pois não pagava a própria faculdade.
Estudava Publicidade e Propaganda por necessidade, sem vontade. “Foi onde comecei a ficar puta com o capitalismo.” Certa vez, um professor explicava a importância da escolha dos atores num comercial: dois homens brancos interpretavam o engenheiro e o proprietário de um imóvel. Ao negro, coube o papel de pedreiro. Dandara questionou o motivo da escolha. O professor respondeu que o critério era bom-senso. “Acabou comigo.”
Após três anos no curso, Dandara foi informada de que não havia mais fundos para o pagamento de sua mensalidade. A felicidade de largar o curso acompanhou uma tristeza por não se graduar. “Pensava: se não for assim, como vou me formar?” Durante o ano seguinte, pesquisou universidades federais. Descobriu o curso de Serviço Social na UFSC, com uma nota de corte baixa.
Era sua esperança: um curso com sua cara, numa universidade pública onde provavelmente teria subsídios. “Sempre fui sem grana, não tinha como dar errado.” Prestou o vestibular. Após aprovada, solicitou auxílio da instituição e recebeu desde o primeiro semestre vaga na moradia estudantil, isenção no restaurante universitário e bolsa de auxílio-permanência. Mudou-se para Florianópolis em 2014 com segundas intenções: sem precisar trabalhar, queria dedicar-se à música.
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“Meu, eu preciso arranjar um lugar pra cantar”, era o pensamento recorrente de Dandara. Cursava o segundo semestre da faculdade quando a chance apareceu. Estava na república de uma amiga e cantou uma música. Um rapaz ficou encantado com sua voz, e no dia seguinte procurou seu contato. Era amigo de uma banda em busca de uma vocalista.
Seu Baldecir era uma grupo de música autoral formado em Florianópolis por seis homens e um vocal feminino. Durante seus dois primeiros anos, haviam percorrido nordeste e sudeste brasileiro em turnês. Com a saída de sua vocalista, estavam em busca de outra mulher para continuar os concertos. Dandara fez um teste e iniciou uma aventura: até então, só cantava releituras. Nunca havia dado voz a canções inéditas.
Sua entrada infelizmente foi posterior ao auge de público da banda. Durante os dois anos seguintes, fizeram turnês apenas pela região sul. Tinham um disco gravado cujo lançamento era constantemente adiado. Quando decidiram lançá-lo, Dandara questionou o uso dos vocais da antiga cantora. “Dois anos de show, a galera acostumada com a minha voz, sai um disco totalmente diferente?”
A solução foi realizar um financiamento coletivo para o lançamento. Arrecadaram sete mil reais, e no começo de 2016 lançaram Transbordar. Com o tropicalismo como principal influência, o álbum combina gêneros em uma levada otimista e animada. Instrumentais inventivos são adocicados e fortalecidos pelos vocais de Dandara, amadurecida musicalmente pelos anos com a banda.
Ao lado da banda, Dandara aprendeu como lidar com o público. “Eu ficava muito nervosa, esquecia a letra, nossa, apanhei muito.” Em paralelo, tinha lições de violão e teoria musical na Escola de Música Livre de Florianópolis.
Surgiu um desejo de ir além da Seu Baldecir, experimentar novidades. “Tenho o maior carinho do mundo pelos meninos, mas veio uma inquietação.” As histórias do auge da banda eram sempre anteriores a Dandara. Ela queria protagonizar suas próprias aventuras.
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Estava de viagem a passeio por Salvador quando a proposta apareceu. Sarah Massí, amiga de Dandara, criou um grupo de Facebook com várias mulheres e convocou-as a formar uma banda. Seu projeto era ousado. O grupo teria apenas mulheres e tocaria samba reggae em Florianópolis, a milhares de quilômetros de distância de Salvador, terra originária do gênero musical.
O grupo foi criado e batizado Cores de Aidê, inspirado pela história da africana escravizada que recebeu do senhor de engenho uma oferta de “liberdade” em troca de casamento. Aidê recusou, fugiu para o quilombo Camugerê e conquistou sua verdadeira liberdade. “É uma inspiração de mulher que não negocia seus valores”, explica Dandara. O “Cores” foi adicionado ao nome para representar a diversidade das integrantes. “São diversas idades, credos, etnias.”
O começo não foi fácil. A maioria das mulheres não conhecia o ritmo ou tocava os instrumentos. Juntas, estudaram para criar as próprias canções. Como queriam coletividade e horizontalidade nas decisões, discutiam longamente a respeito de tudo. Questionamentos como se deveriam assumir o feminismo como a identidade da banda foram muito debatidos.
Após as primeiras apresentações, a Cores de Aidê cresceu rapidamente. Em poucos meses, conseguiram espaço para apresentações em universidades e em espaços de discussão sobre feminismo e negritude. Entrevistas com jornais e emissoras de televisão vieram em seguida.
“Por ter um apelo: mulheres, tambores, cores, em Florianópolis, a gente chamou muita atenção desde o início.”
Após três anos de história, o grupo tem bloco de carnaval, toca em diversas festas e assumiu uma identidade politizada e sedimentada entre seu público, com Dandara como vocalista de várias canções. Ao lado da Cores de Aidê, Dandara encontrou o espaço buscado para chamar de seu. Acompanhou o processo desde o início. Sentou ao lado de outras mulheres para decidir temas e músicas. “Foi a primeira banda minha, oficial, desde o início.”
Na mesma época, colocava em prática outro projeto especial, mantido em segredo por muito tempo. Dandara compunha suas próprias canções. Ficavam todas escondidas, “guardadas na gaveta”, devido a certa insegurança. “Tinha vergonha, achava que não era bom. Enfim, bem primeiros passos de uma compositora.”
Seu acanhamento sofreu um revés no final de 2016. Dandara tinha um ídolo: o autoproclamado “cantautor” François Muleka. “Vira e mexe eu mandava mensagens pra ele.” François sempre respondia, porém sua agenda lotada nunca favorecia um encontro. Dandara não desistia. Enviava mensagens pelas redes sociais, e ia a quantos shows conseguia.
Dandara assistia François tocar num bar na noite em que cantaram juntos pela primeira vez. Alguém na platéia gritou: “A Dandara canta! Chama a Dandara pra cantar!” Ela nunca soube quem foi. Provavelmente alguém que a reconheceu dos shows da Seu Baldecir e da Cores de Aidê.
François aceitou a sugestão e ela foi chamada à frente. “Meu Deus do céu, por que essa pessoa foi gritar isso?” Dandara ficou gelada e tremeu sem parar. Na hora de escolher a música, não conseguia lembrar de nenhuma letra. Num impulso, recordou que havia ouvido naquela semana “Dois ali se amando mesmo.” Disse que cantaria as partes que sabia. “Aí rolou, eu improvisei, fiz a louca e deu certo.”
Após o primeiro contato, François convidou Dandara para participar de apresentações suas em teatros e no Museu Cruz e Sousa. Tornaram-se bons amigos. Ele queria apresentá-la a sua irmã pois achava as duas vozes femininas harmônicas. Marissol Mwaba, a irmã, musicista e estudante de astrofísica, chegou a Florianópolis em setembro de 2016, após uma temporada na França.
O primeiro encontro entre as duas ocorreu na casa de François. “Eu já tava com más intenções porque levei a câmera na bolsa”, ri Dandara. Apesar da vergonha, tocou uma de suas composições. Marissol aprendeu a letra e o ritmo em poucos minutos. Rapidamente, gravaram um vídeo de Leva Teu Samba.
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Dandara foi convidada a participar do lançamento do vídeo álbum ao vivo de François Muleka, Fauno Aflora, em setembro de 2016. A apresentação ocorreu em Balneário Camboriú, com show de amigos e do próprio François. Não houve cachê: apenas hospedagem num hostel e a oportunidade de cantar. Dandara pagou suas passagens no cartão de crédito e foi para Camboriú.
“Fauno Aflora” fora gravado dois meses antes no hostel Armazém do Heyokah, em Florianópolis. Guilherme Meneghelli foi o responsável por dirigir e publicar o filme em seu canal do YouTube, o Rec ‘N’ Play. Criado há quatro anos, o canal reúne vídeos de músicos de Florianópolis e região, em geral amigos de Guilherme com composições voltadas para a política, a espiritualidade e o amor.
Durante a preparação para o lançamento, Dandara, Marissol e François faziam um ensaio informal na sacada do quarto onde estavam hospedados. Guilherme pegou uma de suas câmeras e gravou três músicas, futuramente publicadas no canal do Rec ‘N’ Play. A partir dali, convidou Dandara frequentemente para outras gravações, inclusive de canções solo. “Aí percebi: caramba! To com as minhas músicas em vídeo, em alta qualidade. E comecei a botar mais fé.”
A partir dos vídeos, surgiram várias propostas inesperadas, como ter um vídeo produzido para o projeto multimídia internacional Playing For Change. Com Marissol a tocar baixo e a percussionista Addia Furtado, Dandara gravou o vídeo de Dona Georgina, canção sobre racismo e alienação.
No final de 2016, veio o convite para participar da primeira edição catarinense do Sonora, festival internacional de composição feminina com origem no Brasil. Foi a primeira apresentação de Mulher de Luta, canção em homenagem a Ingrid Maria, poetisa feminista e amiga de Dandara. Na versão final da música, uma poesia de Ingrid foi incluída. “Lembro de ficar no camarim lendo que nem louca, super nervosa tentando decorar.”
Conseguiu. O corpo tremulante não impediu a firmeza da voz. A letra comoveu a platéia. O refrão simples, repetitivo e forte como um grito de luta proclamado durante uma manifestação foi rapidamente decorado pelo público. Durante o último bis, várias vozes repetiam juntas com Dandara: “Maria, mulher de luta! Mulher de luta, sim, senhor!”
A cantora e compositora Tatiana Cobbett, responsável pela coordenação do Sonora em Florianópolis, também ficou comovida. No mês seguinte, convidou Dandara a montar o concerto Elas por Elas ao lado de Carol Voigt, Iara Germer, Jana Gularte e dela própria. Juntas, revezavam-se como intérpretes das composições umas das outras, inclusive “Mulher de Luta”. Devido ao sucesso de público, elas se apresentaram no mesmo formato quatro vezes.
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O ano de 2017 foi decisivo. Começou seu namoro com Renata Schlickmann. Sua mãe e seus irmãos mudaram-se para Florianópolis, trazendo de vez parte de sua vida para a cidade. Cantou com diversos parceiros novos. Passou a abrir todos os concertos da Francisco El Hombre em Florianópolis. Decorou letras em francês para cantar com o com o francês Albert Magister.
Fez um show com o sexteto de multi-instrumentistas Orquestra Manancial da Alvorada (OQMA). Foi convidada para o seguinte. Depois, outro. A situação repetia-se. Veio a proposta de integrar a banda e ela recusou. A faculdade e o Cores de Aidê a mantinham bastante ocupada, e ela iniciava os planos de um álbum solo. Veio outro convite para um show e ela novamente não recusou. Logo, percebeu-se incorporada a OQMA pois nunca falta a um show.
“A OQMA é uma maluquice muito boa, totalmente diferente do que eu já tinha feito.” As canções, quase sempre instrumentais, soam diferentes e experimentais. Durante as apresentações, o grupo utiliza também projeções visuais e textos declamados com teatralidade. A pouca educação formal em música de Dandara encontra ali um desafio. “Sinto que aprendo um monte. Preciso chegar em casa e ralar senão não vai rolar.”
O projeto na carreira solo não arrefeceu. Conseguiu realizar um primeiro show em agosto de 2017, ao lado de Jeff Nefferkturu, violonista, e de Be Sodré, percussionista e parceira na Cores de Aidê. Em dezembro, sua segunda apresentação solo ocorreu no SESC Prainha. Ao lado do guitarrista Rafa Oliveira, o baixista Mateus Romero e o percussionista Ubrother, fizeram uma apresentação gravada e publicada na íntegra pelo Rec ‘N’ Play.
Em seu terceiro show solo, a emoção da sua vida pessoal tomou os palcos e outro grande marco de seu ano teve início. Após cantar “Maria de Luta”, Dandara convidou ao palco Luck Palhano, companheira não-binária de sua mãe. Luck pediu Elisângela de Paula, mãe de Dandara, em casamento. Os irmãos de Dandara assistiram emocionados da plateia. Gravaroam o momento em vídeos compartilhados nas redes sociais.
A história repercutiu até Campinas e chegou até Deborah dos Santos. Evangélica, a tia ficou incomodada e reclamou com a sobrinha. Por medo de que a tia cortasse relações com ela, Dandara nunca contou de sua sexualidade para a maioria de seus familiares. O desejo de contar para a tia veio forte: “Quem eu realmente me importava era ela. E tinha o medo dela cumprir o que tinha dito: que eu morreria pra ela”.
Em lugar do diálogo, sua infância foi pedir que Deus “tirasse isso” dela. Adulta, postergou contar para a tia até cinco dias do pedido de casamento de sua mãe. Angustiada, criou forças e enviou uma mensagem a sua tia com tudo que queria dizer. A resposta surpreendeu suas expectativas. “Ela respondeu que ela sempre soube, e que não deixaria de me amar por conta disso, só que não aceita nem quer na frente dela.” A relação das duas voltou a normalidade. Dandara está mais leve com a certeza do amor de sua tia e a esperança de ser completamente aceita.
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Dandara nunca esteve tão feliz ou tão ocupada. São ensaios, concertos, gravações, faculdade. Durante o carnaval, chegou a realizar dois shows no mesmo dia. Com a OQMA, tocou durante a tarde no festival Psicodália, em Rio Negrinho. Rodou 280 quilômetros e apresentou-se a noite com o Cores de Aidê na praia da Armação, em Florianópolis. Em meio a seu atropelo pessoal, decidiu tentar um financiamento coletivo para seu primeiro CD.
Batizado de “Retrato Falado”, o álbum conterá as músicas que Dandara apresenta no concerto com suas composições. A canção com o mesmo nome é uma triste história sobre gerações de mulheres violentadas na mesma família. A inspiração para a letra veio de histórias ouvidas de seus antepassados sobre sua mãe, sua avó e sua bisavó. “O mais foda é que tudo que eu conto ali acontece com um monte de mulheres, negras.”
Dandara torna seu show um manifesto político carregado de emoções. Ela canta dores sentidas na própria pele, como o abuso contra uma criança descrito em “Denúncia”. Fala sobre desigualdade social, racismo, violência doméstica, estupro, abusos e da solidão. Não é raro ver mulheres chorarem com suas canções.
“Porque na verdade aquilo já te ocorreu durante toda vida. Tá tudo ali, só precisa você querer ver”
A última canção de seu show é sempre “Maria de Luta”: forte, determinada, até raivosa, disposta a lutar para alcançar a mudança. Sua música é seu modo de continuar a ser política enquanto a agenda não permite outras formas de atuação. “Porque a minha maior pretensão é trabalhar como cantora, meu sonho número um.” Segue a faculdade como plano B, e para manter o aprendizado e a luta social em sua vida.
Há também canções alegres, em geral sambas sobre amor e companheirismo. “Assim ninguém sai cortando os pulsos do show”, ela ri. Suas canções mais felizes também trazem histórias de sua própria vida. “Tenho muitas boas histórias para contar também, é o que me faz estar de pé até hoje.” É o caso de Ressignificar, em que joga com o nome de sua namorada para dizer como “Rê significa amar”.
Dandara tem muitos amigos, como atesta sua longa lista de colaborações numa carreira curta. Com fé na “lei do retorno”, ela nunca recusa ajuda. Percebe como as pessoas em seu caminho permanecem e eventualmente estão lá para apoiá-la, pessoal e musicalmente. As parcerias são também sua forma de aprendizado. “Não viciar meu corpo pra uma forma única de cantar é minha ferramenta pra chegar aqui.”
Dandara encontrou na arte uma forma de evoluir e se transformar. Para ela, sua arte deve ir ao fundo, deixar tudo “o menos raso possível”.
“Eu prefiro que seja assim: pra movimentar, falar de política, pensar criticamente. É o que eu faria em qualquer espaço. É o que vou fazer no serviço social, caso não consiga sobreviver de música.”
Seja onde for, Dandara só não para de se movimentar. Conseguiu arrecadar vinte e oito mil reais para seu primeiro disco. O lançamento está marcado para agosto.