Mané com paixão pela ilha

Denise de Castro traz na memória histórias da música de Florianópolis, onde nasceu e cresceu 

O último aluno do período vespertino aproveita a despedida para conversar com Denise de Castro sobre temas notados em certas músicas. Depois que ele parte, ela permanece na Escola Livre de Música Compasso Aberto, no centro de Florianópolis. Tem aula marcada para um grupo de treino vocal à noite.

Segundas e quintas-feiras são os dois dias em que ela deixa pela manhã a casa onde vive com uma amiga na região continental de Florianópolis, atravessa a ponte e chega à escola para dar aulas de manhã,  à tarde e à noite. Seus alunos em geral são crianças e adolescentes individuais, com algumas exceções de adultos ou de grupos como o de hoje.

As aulas quase diárias são a parte fixa na rotina de Denise, que felizmente encontra ainda muita aventura em seu trabalho. Ao falar de seus alunos, sua fala valoriza a percepção do humano envolvido com a arte.

“Cada pessoa é um mundo, e cada pessoa percebe de maneira muito diferente.”

Suas classes nunca são iguais. Além de revezar turmas de piano com canto, ela busca personalizar cada experiência. “É bacana porque você tá sempre correndo atrás da melhor maneira de ensinar um assunto, e sempre me motiva a ouvir coisas novas.”

Quando chega em casa ao fim do dia, Denise ainda gosta de escutar muita música e seguir seus estudos de forma autônoma. “Sempre que posso tô estudando”, ela conta em sua sala de aula, ao lado do piano de madeira, “porque música é um universo que não tem fim, não dá pra parar.” A educação musical e auditiva tem, para Denise, um potencial de transformação do ser humano e da sociedade em todas as suas áreas.

O acesso fácil à educação musical do que em muitos lugares não escapa seu olhar. “Pelo fato de ter um curso de licenciatura e agora até bacharelado em música da universidade, a gente nota como aumentou o número de escolas na ilha.” Denise foi aluna da terceira turma do curso de música na instituição que cita, a Universidade Estadual de Santa Catarina (Udesc), localizada na região central da ilha.

Depois de viver tantas mudanças, Denise certamente acumulou algumas saudades. Com uma fala clara, pausada e calma, Denise consegue recordar lugares que abriram e fecharam, músicas que vieram e foram, felicidades e tristezas trocadas por outras. “A cidade muda o tempo todo. Quem fica por aqui, nota a mudança.”

Crescendo na magia

Denise sabe que está numa cidade privilegiada quando o assunto é música. A ilha da magia tem para ela uma bruxaria misteriosa e especial. “Tem uma junção de pessoas muito bacanas, tanto nascidas aqui como vindas de fora.” Nascida em Florianópolis em 1965, Denise pode acompanhar diversas eras de seu cenário musical.

“Gosto de observar como tem artistas de todas vertentes: grandes músicos do choro, do samba, do jazz, da música instrumental.”

A primeira saudade dela são os bares com piano que frequentava com seu pai durante a infância em Florianópolis. “Havia muitos pianos nos hotéis, nos restaurantes, nos bares.” Ela fazia questão de acompanhar seu pai, pianista profissional, em todas as apresentações que conseguia. Era a filha caçula depois de cinco irmãos homens, e a primeira a desde cedo demonstrar seu interesse pela música. “Eu era pentelha então onde eu podia entrar, eu fazia questão de estar.”

O pai foi seu primeiro grande ídolo e educador. Colecionador de discos, colocava para tocar na vitrola em sua casa música de diversos gêneros, que Denise escutava atenta. “Sinto que o ambiente me fez ter noção da música como um todo, além do regional.” No repertório de suas apresentações, apareciam “os clássicos americanos, boleros, tango, música brasileira e as coisas que tocavam na rádio: Cauby Peixoto, Ângela Maria...”

A casa onde vivia com seus pais e seus irmãos estava localizada no centro da cidade, na Travessa Harmonia, que até hoje tem o mesmo nome. Próxima a sua casa, estava recém terminada a Avenida Beira-Mar Norte, avenida construída sobre o aterro das Praias de Fora, do Müller e de São Luís. Antigo ponto de pescadores, a nova edificação pretendia criar um espaço adequado para o tráfego acelerado de automóveis.

Apesar da instalação das quatro vias expressas, em Florianópolis não havia carros suficientes para interferir sobre a tranquilidade das ruas. Muitos bares e restaurantes ocupavam lado a lado o espaço lateral da avenida, virados na direção do mar. “Era o point da galera”, recorda Denise. “O fim de tarde era lindo, ficava um pessoal jovem e vários bares tinham música ao vivo.”

Fora da região central, os pontos de música ainda eram poucos. Eram poucos os moradores de bairros no Norte e no Sul da ilha. As casas nas praias muitas vezes passavam o ano vazias, e só recebiam famílias como a de Denise. “Chegava dezembro a gente ia, chegava março a gente voltava, antes de serem bares como hoje, independentes, com vida própria.”

Pelos palcos dos bares do centro, Denise conheceu grandes músicos considerados hoje parte da história da ilha. Ouviu tocar a Regional do Zequinha, coordenado por  José Cardoso, o maestro Zequinha. Viu também as apresentações do sambista Zininho, compositor do “Rancho de Amor à Ilha”, hino oficial de Florianópolis.

Aos onze anos, Denise começou a estudar o piano. Após a criação do Centro de Artes da UDESC, ela ingressou no curso de licenciatura em música. Consolidou-se ali sua relação com a ilha e a vida através da arte e da educação.

Metendo bronca

A graduação foi o espaço onde Denise formou seu primeiro grupo, o Flor de Lis. As integrantes eram todas mulheres, instrumentistas em formação responsáveis pela flauta, violão, baixo, percussão e claro, o piano. Juntas, as jovens faziam apresentações nos bares da capital, e chegaram a viajar para participar de eventos como o Festival da Canção de Blumenau, onde venceram o prêmio de melhor arranjo.

A iniciativa de formar um grupo apenas de mulheres é reconhecida em retrospectiva por Denise. “Foi há mais de vinte anos!” Na época, ela já reconhecia as sutilezas do machismo no mundo da música. Sempre achou incômodo, por exemplo, ouvir exclamações exageradas a respeito de algum homem que é um grande músico.

“Repara que nunca fazem um comentário desses pra uma mulher. E tem mulher que mete bronca!”

A destreza de Denise ao piano foi notada por outra mulher: a saxofonista Silvia Beraldo, futura fundadora da escola Compasso Aberto. Silvia havia reunido músicos para formar a Orquestra de Dança Quebra com Jeito, banda de baile cuja vocalista era a célebre Neide Mariarrosa. Denise passou a integrar o grupo próximo de sua formação final e dividir o palco com uma musicista que considera referência até hoje por “uma voz linda, bom gosto maravilhoso pra repertório, e cantava tudo: do jazz ao samba.”

Após conseguir seu diploma na faculdade de música, Denise sentiu a necessidade de buscar conhecer uma vida longe das praias onde havia vivido toda sua vida. “Tinha músicos daqui que eu já conhecia e foram pra Portugal. Disseram que a música brasileira era muito bem-vinda.” Pela primeira vez, Denise fez as malas decidida a explorar a vida fora de Florianópolis. Partiu no começo de 1990.

Ao longo dos quatro anos seguintes, realizou apresentações com um repertório de música brasileira em Portugal e na Espanha. Viveu temporadas entre as cidades litorâneas portuguesas de Lisboa, Porto e Algave. Gostava particularmente da última cidade. “Na beira do mar, muitas praias lindas, muitos resorts, restaurantes, bares. Então tinha muito trabalho.” Conheceu outros artistas e fez muitos amigos. Aproveitou também para fazer o curso de história de música do maestro António Vitorino de Almeida.

O gosto de Denise pela literatura sempre existiu em paralelo a música. Desfrutava escrever poesias. Durante sua estadia fora do Brasil, a escritura e a composição juntaram-se e Denise criou suas primeiras canções. Ela arrisca timidamente o motivo: “por ter sido pela saudade.” A dúvida parece consumada ao ouvir suas letras: contavam sempre histórias da ilha onde despediu-se de sua família. Por conta dos parentes, retornou a Florianópolis em 1995.

Ela é daqui

O regresso fez Denise perceber volatilidade dos espaços para a música na cidade. “Até hoje eles abrem e fecham, abrem e fecham, abrem e fecham.” Os bares e restaurantes da Avenida Beira-Mar encerraram suas apresentações musicais para não atrapalhar o descanso dos moradores de apartamentos da região. Os terrenos são até hoje o metro quadrado mais valorizado da cidade.

Outra impressão da musicista foi que haviam chegado os automóveis para quem a avenida havia sido construída e expandida até ter quatro faixas. A velocidade parecia acelerada.

“A gente tem um tempo, uma batida. A efervescência das pessoas chegando modifica as coisas. A cidade muda o tempo.”

No ano de seu regresso ocorreu também a inauguração da escola Compasso Livre, fundada por sua amiga Silvia Beraldo numa casa antiga da avenida Rio Branco, centro de Florianópolis.

Denise encontrou ali um emprego estável enquanto dedicou-se a um novo projeto: através de um edital da Fundação Catarinense de Cultura, conseguiu verba para produzir um CD com as canções de seu exílio voluntário.

O responsável pela produção de seu primeiro álbum foi o amigo e músico catarinense Luiz Meira, na época residente em São Paulo. Acompanhada pela flautista Miriam Moritz. O demais músicos envolvidos eram conhecidos de Meira em São Paulo: Sizão Machado no baixo, Edu Ribeiro na bateria, Guello na percussão, Ricardo Cristaldi nos teclados, Teco Cardoso no saxofone, Bocatto no trombone e Jotagê Alves no clarinete.

As sessões de gravação duraram apenas alguns dias, e em mais alguns meses as cópias chegavam em sua casa. Batizado de Espírito da Terra, o primeiro disco de Denise é uma declaração de amor escrita a distância. “Quero viver numa ilha, eternamente a te amar”, canta em Ilha da Magia.

Mesmo as canções mais agitadas preservam um aura de tranquilidade. Várias citam nominalmente lugares de Florianópolis. No samba Morro da Caixa, o título em si evoca o bairro lar da segunda escola de samba mais antiga da ilha, a Copa Lord. Em Maria Rosa, a intérprete então recém falecida da Quebra Com Jeito recebe uma homenagem de sua antiga companheira de palcos. As manifestações culturais e o folclore ilhéus criam recursos para várias das histórias e metáforas cantadas.

O CD foi enviado para Denise para várias rádios e apresentado em alguns shows pelo estado. Com o potencial de sua composição revelado para o público, Denise a partir dali iniciou também sua participação anual nos concursos de marchinhas promovidos pela prefeitura de Florianópolis.

“Sempre com temas daqui. Minha ligação com as pessoas, o lugar, o pescador, a rendeira… De alguma maneira eles acabam aparecendo.”

Na Beira-Mar é uma coisa, na Paulista é outra

A segunda grande despedida entre a musicista e a ilha aconteceu em 2000, quando mudou-se para a capital de São Paulo. Sua nova residência passou a ser um apartamento no bairro de Moema, região centro sul do município. Denise ficou encantada pelas oportunidades de trabalho. No mesmo bairro onde vivia, dava aulas na escola de música Aqui Jazz e fazia apresentações com repertório de jazz no Garoa Bar.

Apesar de revezar vários trabalhos, do acesso fácil a equipamento musical e da vida cultural agitada, Denise sentia cansaço. As ruas cercadas de prédios altos enchiam-na de uma certa agonia.

“Não me sinto bem com tudo fechado ao redor. Tenho necessidade da tranquilidade de olhar o horizonte, de que o olho vá longe sem encontrar nada.”

Por mais incrível que fosse, a cidade e ela não combinavam. “E um congestionamento na Beira-Mar é uma coisa, na Paulista é outra”, brinca.

Denise partiu pois queria “saber como era” a grande cidade. Após dois anos na Pauliceia, voltou a Florianópolis com a certeza de haver feito muita coisa e de poder entrar em uma nova etapa. “É legal a gente mesmo ver qual é, e ter uma identificação com um lugar para voltar e querer contribuir com ele como possa.”

A volta trouxe a pianista para a Compasso Livre novamente e encheu de uma vontade de trabalhar pelo seu lugar amado. Ainda assim ficou surpresa ao receber o convite para coordenar a direção musical do concerto em homenagem ao escritor e maior pesquisador da cultura açoriana na ilha: Franklin Cascaes. O espetáculo foi nomeado Festa Para Cascaes, nome também de uma canção de Denise.

A produção reuniu estudiosos da cultura local, museólogos, artistas plásticos e músicos. Foi realizada uma ampla pesquisa para criar um repertório a partir de músicas folclóricas e brincadeiras de roda. Várias partes da montagem buscavam despertar memórias da infância dos manés da ilha. “A gente notava o apelo para o pessoal daqui, e ficou muito bonito.”

A empolgação com a pesquisa levou Denise a criar um novo projeto de concerto desenvolvido a partir de estudos. Fechou uma parceria com Cláudia Barbosa, filha do compositor Zininho, e juntas montaram um show para resgatar os compositores que nasceram ou viveram em Santa Catarina. O projeto batizado de Nossos Compositores percorreu o estado durante dois anos, e ainda hoje é apresentado ocasionalmente.

Logo em seguida, Denise venceu outro edital da Fundação Catarinense de Cultura para o seu segundo CD. O local de gravação foi o Estúdio Pimenta do Reino,  na região central de Florianópolis. Desta vez, Denise pode acompanhar mais de perto todas as etapas do projeto. Foi pianista além de vocalista, e deu mais palpites ao arranjador Wslley Russo. “Eu dava mais ideia, mas o resultado pareceu mais a minha mão.”

O time de instrumentistas envolvidos parecia uma reunião de amigos, com velhos conhecidos da ilha a marcar presença. Novos instrumentos de percussão foram explorados para criar músicas mais complexas.  O álbum foi nomeado Todas as Cores, e manteve a temática de seu trabalho anterior: desenhar a partir do som as imagens de Florianópolis. A instrumentação mais madura acompanhou letras sobre lugares ainda não cantados, como a Praia de Naufragados e a Praia da Solidão.

Notas de Floripa

Denise permanece atenta às novidades musicais em Florianópolis. Consegue citar pontos de música em diversos pontos da cidade, além de falar com grande proximidade de vários nomes conhecidos. Gosta de ouvir a música produzida em sua terra natal, e diz perceber até as sutilezas de quem escreve na ilha sem haver nascido nela. “Mas eu acho bacana, é interessante a gente ver a percepção do outro sobre o mesmo lugar.”

A arte possui na opinião de Denise grande potência para formar a identidade de um lugar, “como um espelho que proporciona entendimento para as pessoas”. Seja na música, na literatura ou até na tradicional renda da ilha, ela nota uma capacidade de conduzir viagens sem a necessidade de rodovias ou aviões. “Se uma pessoa vê ou ouve aquilo, ela vai ter pelo menos uma ideia de Florianópolis.”

A curiosidade em relação aos ritmos brasileiros também leva Denise a conhecer seu país. Ela entristece com a desvalorização das artes nos currículos escolares.

“O povo brasileiro é um povo extremamente musical, que gosta e se diverte com a arte. Assim, descobre Pernambuco com o cavalo-marinho, Maranhão com o tambor de crioula, Bahia com o samba reggae, e assim por diante. É de uma riqueza maravilhosa, mas fica restrito a sua curiosidade quando podia ser uma ferramenta de educação da criança mesmo.”

Como artista, sente também uma necessidade interna de ter posicionamentos a respeito da política e da sociedade. Chama a administração do presidente Temer de desgoverno e fala vigilante sobre a gravidade do golpe de 2013. Reclama também do prefeito Gean, das privatizações e da terceirização.

Para além da escola, a musicista também continua a subir nos palcos de cafés, bares e teatros sempre que surgem convites. Desde 2010, conseguiram reunir a Quebra Com Jeito algumas vezes. O projeto Nossos Compositores também continua. Em 2017, apresentou também suas próprias composições e as da amiga Silvia Beraldo lado a lado durante o Sonora - Festival internacional de Compositoras.

Seu grande projeto do momento é um concerto com uma combinação de duas pianistas ao lado de Patricia Bolsoni. O projeto está suspenso por conta de um pé torcido de Patrícia. A empolgação de Denise, não. “Dois pianos juntos, já pensou que bacana?” A empolgação é sincera e ao mesmo tempo tranquila e relaxada, como continuar a ser a pianista que gosta de perder os olhos no encontro do horizonte com o mar.

Mané com paixão pela ilha
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