Análise de diretriz brasileira para tratamento nutricional no pré-diabetes e no diabetes mellitus tipo 2 sob a perspectiva da determinação social em saúde: proposição de um modelo de avaliação

Abstract

Introdução: O Diabetes Mellitus tipo 2 (DM2) é uma doença crônica não transmissível (DCNT), representa uma das principais causas de morbimortalidade global, afetando pessoas em todos os países, idades, sexo ou gêneros, sendo considerada uma epidemia mundial. Segundo o Atlas elaborado pela International Diabetes Federation (IDF), de 2021, 537 milhões de adultos (10,5% da população mundial) entre 20 e 79 anos viviam com Diabetes Mellitus (DM do tipo 1, DM2 ou DM gestacional), sendo que o DM2 correspondia a aproximadamente 90% dos diagnósticos. Sabe-se que, no tratamento do DM2, a terapia nutricional é fundamental para a melhoria dos sintomas e para a prevenção das possíveis complicações. No Brasil, em função da prevalência, magnitude, gravidade e consequências biológicas e sociais do DM2, há diversos documentos (diretrizes ou guidelines) com foco no seu melhor manejo, elaborados e/ou recomendados pelo Ministério da Saúde e outras entidades não governamentais. Reconhecendo-se a importância do papel do nutricionista no enfrentamento do desequilíbrio glicêmico, identifica-se a adesão ao tratamento nutricional como desafiadora, mesmo com diretrizes que visam a melhoria do atendimento e resultados favoráveis no controle da doença. Segundo alguns autores, a abordagem destes documentos e da maioria das condutas profissionais, focadas na mudança de estilo de vida e autocuidado, não estariam sendo capazes de reconhecer a determinação social subjacente às principais dificuldades referentes ao tratamento do DM2. Portanto, não seriam adequadas e suficientes para a resolução ou mesmo atenuação do complexo e multidimensional problema relacionado ao DM2. Esta limitação na eficácia das orientações nutricionais é atribuída à não abordagem da determinação social em saúde como problemática central a ser explorada para propostas de maior e/ou melhor adesão ao tratamento do DM2. A teoria da determinação social em saúde é o campo de conhecimento que reconhece a indissociabilidade entre o ser biológico e o social, condicionando a saúde desses indivíduos e populações às questões históricas que deram base ao modelo da sociedade capitalista, perpassando também pela teoria dos determinantes sociais em saúde (DSS), abordagem capturada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Neste sentido, determinadas diretrizes, procedimentos ou protocolos de cuidados em saúde que não abordam a teoria da determinação social em saúde seriam somente um ?remendo?, de gestão da precariedade, ao invés do enfrentamento às questões construídas sob um modelo contraditório, de acumulação, opressão e exploração, antagônico à promoção da saúde. Em revisão de literatura realizada para elaboração desta dissertação de mestrado, identificou-se que há estudos que investigaram a associação dos DSS com foco no DM2, e também que investigaram a adesão ou não de pacientes frente às intervenções nutricionais para melhora no DM2. Entretanto, não foi localizado, na busca da literatura realizada, estudo que relacione determinação social em saúde com DM2 na prática clínica do nutricionista, utilizando-se como objeto a análise de uma diretriz científica, o que justifica a originalidade e relevância do presente estudo. Objetivo: Realizar reflexão crítica sobre a diretriz da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD) direcionada ao enfrentamento nutricional do pré-Diabetes e do Diabetes Mellitus tipo 2, sob a perspectiva da determinação social em saúde. Métodos: Estudo qualitativo, do tipo análise documental, que teve como foco a diretriz da SBD, intitulada ?Terapia Nutricional no Pré-Diabetes e no Diabetes Mellitus Tipo 2?. A escolha do documento baseou-se na relevância científica da instituição, no foco nutricional do texto e em sua aplicabilidade prática no atendimento a pessoas com DM2 no Sistema Único de Saúde (SUS). A análise foi conduzida utilizando-se a abordagem ?What is the problem represented to be?? (WPR), desenvolvida por Carol Bacchi. Essa metodologia crítica examina documentos institucionais a partir de seis perguntas norteadoras, buscando identificar narrativas dominantes, suposições implícitas e silêncios que moldam a representação dos problemas e influenciam o entendimento e as práticas em saúde. O processo analítico ocorreu em seis etapas: (1) revisão da literatura para embasamento teórico; (2) leitura integral da diretriz; (3) resposta às perguntas da WPR, à luz da teoria da determinação social em saúde; (4) criação de categorias de análise com base nas respostas obtidas; (5) elaboração da discussão a partir dessas categorias; e (6) desenvolvimento da conclusão. Resultados: A análise da diretriz utilizando a abordagem WPR revelou um predomínio da narrativa biomédica e individualizante, com foco na responsabilidade do indivíduo pelo autocuidado. A discussão foi organizada em três tópicos principais: (i) ?DM2 e determinação social em saúde: onde estão os silêncios??, com os eixos Mudança de estilo de vida na prevenção e tratamento do DM2 e Qualidade da alimentação e recomendação de nutrientes específicos no DM2; (ii) ?Perspectivas complementares: análise de outros documentos oficiais sobre DM2 e Determinação social em saúde?, comparando a diretriz com outros documentos oficiais; e (iii) ?Narrativa dominante e o cuidado em saúde pelos profissionais nutricionistas: quais são os efeitos para as pessoas com DM2??, abordando o papel do nutricionista. Os resultados mostraram que as recomendações da diretriz desconsideram fatores estruturais, como desigualdade socioeconômica e acesso restrito ao SUS, o que dificulta a adesão às práticas propostas. Assim, destaca-se a necessidade de integrar abordagens críticas e contextuais ao tratamento nutricional do DM2, alinhando práticas profissionais às políticas públicas que busquem enfrentar as causas sociais do adoecimento. Conclusão: A análise da diretriz da SBD revelou um silêncio importante em relação à abordagem da determinação social em saúde, o que pode impactar negativamente a forma como o DM2 é estudado e tratado. As soluções apresentadas pela diretriz mostram-se ?descompromissadas? e distantes da realidade material e histórica, o que pode favorecer a perpetuação de uma narrativa simplista que pouco contribui para a melhoria da qualidade de vida da população afetada. Sob a perspectiva da determinação social em saúde, o enfrentamento do DM2 exige mais do que conscientização e diretrizes clínicas; demanda a superação do modelo econômico capitalista dependente e a construção de uma economia planificada, orientada pelas necessidades nutricionais do povo. Nesse contexto, o nutricionista deve adotar uma visão ampliada e humanizada, atuando também como agente de transformação social, defendendo mudanças estruturais para garantir a soberania e segurança alimentar no Brasil.

Abstract: Introduction: Type 2 Diabetes Mellitus is a chronic non-communicable disease (NCD) and represents one of the leading causes of global morbidity and mortality, affecting people in all countries, ages, sexes, and genders, and is considered a worldwide epidemic. According to the 2021 Atlas developed by the International Diabetes Federation (IDF), 537 million adults (10.5% of the global population) aged between 20 and 79 years were living with Diabetes Mellitus (DM, including type 1, T2DM, or gestational diabetes), with T2DM accounting for approximately 90% of diagnoses. Nutritional therapy is fundamental in the treatment of T2DM, contributing to symptom improvement and the prevention of potential complications. In Brazil, due to the prevalence, magnitude, severity, and biological and social consequences of T2DM, several documents (guidelines or protocols) have been developed and/or recommended by the Ministry of Health and other non-governmental entities focusing on its optimal management. Recognizing the crucial role of nutritionists in addressing glycemic imbalance, adherence to nutritional treatment remains challenging, even with guidelines aimed at improving care and achieving favorable outcomes in disease control. According to some authors, the approach of these documents and the majority of professional practices?centered on lifestyle changes and self-care?fails to recognize the underlying determinants associated with the main difficulties in T2DM treatment. Therefore, these approaches may be inadequate and insufficient for solving or even mitigating the complex and multidimensional issues related to T2DM. This limitation in the effectiveness of nutritional guidelines is attributed to the lack of focus on social determination in health as a central issue to be explored in proposals aimed at enhancing adherence to T2DM treatment. The theory of social determination in health is a field of knowledge that acknowledges the inseparability of the biological and social being, conditioning the health of individuals and populations to historical issues underlying the capitalist societal model. This theory also encompasses the concept of social determinants of health (SDH), an approach embraced by the World Health Organization (WHO). In this context, health care guidelines, procedures, or protocols that fail to address social determination in health are considered mere ?patches? for managing precariousness, rather than addressing issues rooted in a contradictory model of accumulation, oppression, and exploitation that is antithetical to health promotion. A literature review conducted for this master?s dissertation identified studies examining the association of SDH with a focus on T2DM, as well as research on patient adherence to nutritional interventions for improving T2DM outcomes. However, no studies were found that specifically related social determination in health to T2DM in the clinical practice of nutritionists through the analysis of an official guideline, which justifies the originality and relevance of this study. Objective: To conduct a critical reflection on the guideline of the Brazilian Diabetes Society (SBD) regarding the nutritional management of prediabetes and type 2 diabetes mellitus, from the perspective of social determination in health. Methods: This qualitative study, based on documentary analysis, focused on the SBD guideline titled ?Nutritional Therapy in Pre-Diabetes and Type 2 Diabetes Mellitus?. The selection of the document was based on the scientific relevance of the institution, the nutritional focus of the text, and its practical applicability in treating individuals with T2DM within the Brazilian Unified Health System (SUS). The analysis was conducted using the ?What is the problem represented to be?? (WPR) approach, developed by Carol Bacchi. This critical methodology examines institutional documents through six guiding questions, aiming to identify dominant narratives, implicit assumptions, and silences that shape problem representation and influence health understanding and practices. The analytical process occurred in six stages: literature review for theoretical support; complete reading of the guideline; responses to the WPR questions in light of the theory of social determination in health; creation of analytical categories based on the responses; development of the discussion from these categories; and formulation of the conclusion. Results: The analysis of the guideline using the WPR approach revealed a predominance of a biomedical and individualistic narrative, focusing on individual responsibility for self-care. The discussion was structured into three main topics: ?T2DM and social determination in health: where are the silences???covering themes such as lifestyle changes in the prevention and treatment of T2DM and dietary quality with recommendations for specific nutrients; ?Complementary perspectives: analysis of other official documents on T2DM and social determination in health??comparing the guideline with other official documents; and ?Dominant narrative and health care by nutrition professionals: what are the effects on people with T2DM???exploring the role of the nutritionist. The results demonstrated that the guideline?s recommendations overlook structural factors such as socioeconomic inequality and restricted access to SUS services, which complicate adherence to proposed practices. Therefore, the integration of critical and contextual approaches into the nutritional treatment of T2DM is essential, aligning professional practices with public policies that address the social causes of the disease. Conclusion: The analysis of the SBD guideline revealed a significant silence regarding the approach to social determination in health, which may negatively impact how T2DM is studied and treated. The solutions presented by the guideline appear disconnected from material and historical realities, potentially perpetuating a simplistic narrative that contributes little to improving the quality of life of the working population affected by T2DM. From the perspective of social determination in health, addressing T2DM requires more than just awareness and clinical guidelines; it demands overcoming the dependent capitalist economic model and constructing a planned economy oriented toward the nutritional needs of the people. In this context, the nutritionist must adopt a broader and humanized vision, also acting as an agent of social transformation by advocating for structural changes to ensure food sovereignty and security in Brazil.